Local Publico: Colina Meio-Sangue

Eu não era uma princesa de contos de fadas, não esperava achar meu príncipe encantado e não queria socializar com outros chalés, obrigada.  Vestida com uma camisa negra com estampa de um anjo encapuzado segurando uma foice, jeans escuro, all star negro e Black Pendant no pescoço, eu parecia o que essas pessoas chamavam de gótica. Talvez eu fosse um pouco mesmo, mas isto era indiferente no momento. Considerei ir para a floresta, mas a última vez que estive por lá voltei muito machucada devido a um combate. Decidi, por fim, ir para a Colina. Parecia ser vazio o suficiente para mim, até começar o entra e sai de campistas, mas enfim...
O que eu não esperava era que já houvesse alguém lá. Por algum tempo, encarei o rapaz em silencio e depois olhei para Ládon. Como o dragão não fazia nada, pelo menos eu sabia que não representava perigo, não imediato pelo menos. Dei um meio sorriso e olhei para o outro lado. Sentei-me um pouco afastada dele. Fiquei em silencio por algum tempo antes de falar com uma voz meio abafada.
─ Oi.

Eu havia construído realmente um muro ao meu redor e, principalmente, ao redor do meu coração desde a morte de Joseph. Não queria me apegar a ninguém ou a nada que eu pudesse perder de forma tão simples e rápida e sem poder impedir. Olhei para um rapaz por algum tempo. Ele estava tentando socializar comigo? Uma pessoa tentando se aproximar de uma prole de Hades? Aquilo me deixou sem reação por algum tempo. Estava acostumada com campistas me evitando e ignorando minha existência. Me vi forçada a dar um sorriso e olhei para o céu. Dobrei minhas pernas e as abracei, apoiando o queixo entre os joelhos.
─ Sou Solaria, prazer em conhece-lo. ─ Havia aprendido a muito tempo o que se devia dizer ao conhecer uma pessoa. Tentando demonstrar que estava disposta a conversar, pisquei algumas vezes e voltei a falar. ─ Não se incomoda em ser vista com uma filha de Hades?
Se eu poderia assusta-lo com o nome de meu progenitor ou em ser tão direta? Possivelmente podia, mas preferia fazer logo a pergunta e permitir que ele fosse embora. Tudo oque eu menos queria era que alguém ficasse ali achando que eu era uma coisa, quando era outra. Iria doer menos se ele fosse embora agora do que depois, quando já tivesse me apegado e percebesse que ficar afastada seria doloroso, mas não poderia fazer nada a respeito.

Certo, agora eu estava meio perdida. Ele não se incomodava com meu progenitor, fez um discurso sobre a necessidade de cada divindade e a relação luz/trevas para, depois, elogiar minha aparência e perguntar se estava ali a muito tempo. Minha face ficou tão rubra quanto os meus cabelos ou mais. Apertei os braços em torno de minhas pernas e tentei concentrar minha mente no chão aos meus pés. Pareciam que haviam borboletas voando em meu estomago e meu coração queria pular por minha boca e dançar um pouco antes de me ver morrendo ali na Colina.
─ Eu... Obrigada, eu acho. So-sou um pouco tímida sim. E estou aqui a seis anos. Vim aos doze mais ou menos. ─ Falei em uma voz oscilante. As vezes alta, as vezes baixa e por vezes em altura normal. Não tinha como manter ela em um tom mais normal quando meu sangue parecia querer ficar todo em minhas bochechas. Quando achei que minha voz não me trairia, voltei a falar. ─ Nunca conheci um filho de Atena antes. Se bem que além de meu irmão, você é a única pessoa que conheço aqui.
Eu estava incrivelmente falante considerando o quão afastada da civilização eu era. Por que estava falando tanto? Quem era aquele garoto na realidade? Eu comecei a sentir raiva e medo. Medo por não entender, raiva por estar sentido que alguma coisa ali estava errada e eu não sabia o que era, não podia controlar. Era rezar para tudo aquilo não passar de um mal entendido de minha parte...

Perto demais, perto demais... Minha mente dizia, soltei as minhas pernas e as estiquei. Com os braços esticados, os coloquei para trás e usei as mãos espalmadas como apoio atrás de mim, em uma postura um pouco mais relaxada. Olhei par o céu, respirando fundo algumas vezes antes de responder a ele.
─ Eu fico muito tempo no chalé, as vezes na ilha da minha senhora... Sou seguidora de Circe. É difícil me ver passeando pelo Acampamento ou mesmo treinando. ─ Estava tentando parecer relativamente relaxada e ainda disposta a conversar. O rubor em minha face parecia não querer cessar conforme o tempo passava e a conversa fluía. ─ É, meu irmão é dois anos mais novo que eu...
Dei de ombros leve e vagamente. Pelo que havia entendido, ele possuía 16 anos, então eu era a mais velha do chalé de Hades, o que me deixava as vezes com a sensação de que devia protege-lo por ser a irmã mais velha, mesmo não tendo ninguém para fazer isso por mim. Quando ele me pediu para falar mais sobre mim, pensei seriamente se devia falar e o que. Cheguei a conclusão que era melhor resumir fatos que me eram dolorosos ou eram pouco importantes em um geral
─ Bem... Eu sou fruto de um estupro e consequência de uma profecia antiga do lugar onde morava, não vejo minha mãe desde que fugi da ilha em algum lugar do oceano e nunca entramos em contato desde então, nunca fui a escola também e meu melhor amigo morreu quando eu tinha doze anos. Eu era considerada uma maldição onde nasci e todos me odiavam, menos esse meu amigo. Não que não fosse mesmo uma maldição, mas... ─ Parei para respirar um pouco e pensei em tudo que eu havia falado. Era o meu passado resumido. A menção de meu amigo reabriu uma ferida dolorosa em meu peito e eu fechei os olhos, tentando não começar a chorar ali na frente de alguém que acabei de conhecer. ─ Atualmente tenho dezoito e sou Feiticeira de Circe... Esqueci de contar algo? E fale-me de você...

Era como se a Branca de Neve estivesse conversando com o personagem de alguma tragedia. Dei uma risada ao final da historia dele, mas não uma risada de quem acha graça: uma risada de quem se diverte com a tragedia. Era incrível como minha própria historia parecia pertencer a outro mundo, onde só eu sabia o quão ruim aquilo tudo poderia ser. Olhei para ele de forma acolhedora e dei um sorriso terno.
─ Me dou muito bem com meu irmão, de verdade. ─ Pelo menos entre nós, proles de Hades, havia um sentimento de igualdade e não o de rivalidade. Sabíamos o quão difícil as coisas seriam para nós e não tentávamos nos matar. ─ Sim, homens lá são transformados em animais... E a magia é legal mesmo. É uma pena que não posso te mostrar o lugar. Hmmm... Veja.
Estendi a mão direita em direção ao chão entre nós e me concentrei em qualquer areia que existisse ali. Seria mais fácil se fosse na praia, mas era possível ali também. Com os olhos fechados e a mente focada, juntei uma quantidade de areia e formei uma pequena coruja com 3 centímetros. Abri os olhos de novo e espiei, dando um sorriso.
─ É a primeira vez que faço isso... ─ Dei uma risada depois disto, mexendo no cabelo.

A surpresa dele fora o mais engraçado. Mantive a coruja por mais algum tempo e depois fechei a mão, fazendo ela explodir em uma nuvenzinha de areia. Era um pouco cansativo para mim manter a Geocinese por muito tempo, uma vez que ainda era um nível bem iniciante.
─ É um poder herdado de meu pai, a Geocinese. Não consigo fazer muita coisa ainda, mas da para o gasto. ─ As palavras, ao saírem da minha boca, ficaram com um gosto de que eu considerava aquilo algo muito "grande", quando na verdade não achava. Dei de ombros e olhei para o céu noturno. ─ Não sei, talvez... Quem sabe a pedido de uma feiticeira e com uma prova de valor, Circe concorde.
Nunca tinha visto um garoto entre nós, então era difícil afirmar com toda certeza se era possível. Mordi o lábio inferior e olhei para o céu pensativa. Algumas coisas eram mais complicadas do que outras: ele tentava encontrar uma explicação para tudo, eu evitava muitas explicações. Ele era uma pessoa com uma vida normal, eu era uma excluída da sociedade "normal". Ele era o que toda garota normal deveria esperar, eu era o que todas as pessoas ajuizadas evitavam. Olhando por este angulo, o simples fato de estarmos conversando parecia ser algo totalmente errado, mas eu simplesmente não me incomodava. Dane-se o que as pessoas achavam certo ou errado. Nunca haviam realmente se incomodado comigo. Os deuses me forçaram a viver naquela maldita ilha durante doze anos e perder tudo o que eu tinha lá. Suspirei e me virei para ele. Durante alguns instantes, eu fiquei o observando quieta, depois dei um abraço rápido nele e o soltei, apesar de continuar encarando-o. Eu estava, no fundo, me divertindo com aquele garoto.
─ Não tente me entender, Benjamin. E aconselho que não tente entender o que está relacionado a mim: nada aqui não faz sentido e você vai se cansar atoa.

Eu fiquei encarando o ar a minha frente por algum tempo. Não estava acostumada com coisas que eu não via, quero dizer... Eu podia ver e conversar com os mortos, porque não podia ver um garoto só porque ele colocou um boné? Minha expressão permaneceu neutra, apesar de o quão estranho aquilo fosse. O toque dele me assustou um pouco, como uma criança ao sentir algo se enroscando em suas pernas e depois constatando que era apenas seu gatinho. Toquei a mão dele e afaguei, sinalizando que estava tudo bem. E então aconteceu.
Os lábios dele nos meus foram um susto enorme para mim. Os primeiros segundos, fiquei sem reação. Depois me peguei correspondendo ao beijo e, ao notar o que eu mesma fazia e me surpreender com aquilo, eu empurrei o garoto e me levantei. Fui alguns passos para a esquerda, virando de costas para ele e tocando minha boca com a ponta dos dedos destros. Aquilo fora um beijo? Por que eu havia retribuído? O calor que eu sentia em minha face... O que era? Eu não conseguia achar resposta. Meu coração estava acelerado e eu olhava para o chão com um ar desesperado.
Quando você está acostumado com a morte e a magia, qualquer coisa que se afaste do que você vê como lógica não é algo aceito. Nenhum garoto nunca encostara em mim daquele jeito, mas eu havia no fundo gostado. Respirando fundo, eu me virei e olhei para onde ele deveria estar.
─ Benjamin, apareça. É sério, não vou te machucar e não quero ser obrigada a te procurar. ─ Falei em um tom tranquilo. Aguardei calmamente ele se mostrar e me aproximei. Fiquei na ponta dos pés para alcançar mais ou menos a altura do rapaz, peguei o colarinho da blusa dele puxando-o para mim e o beijei. Eu não sabia exatamente o que era aquilo, mas haviam borboletas no meu estomago. Meus braços se estenderam e eu envolvi o pescoço do rapaz em um abraço apertado. Não era exatamente um daqueles beijos apaixonados, mas havia uma necessidade nele que eu até então desconhecia. Quando comecei a ficar sem ar, fui finalizando o beijo e o encarei por algum tempo. ─ Nunca mais faça algo sem que EU tenha concordado. Na próxima vez, eu posso não estar curiosa ou mesmo ser piedosa com você.
Então eu soltei-o com um pequeno empurrão no ombro e voltei a me sentar.

Eu fiquei quieta mesmo depois da declaração dele. Olhava o nada com uma expressão vazia, tentando compreender, ainda, o que acontecera. Ficar sozinha era bom, fora isso que eu havia acreditado por tanto tempo. Mas, agora, havia alguma coisa mudando. As proteções que eu havia criado a tantos anos estavam ameaçando ruir... E, agora, o que eu faria? Parei e olhei para o rapaz, séria.
─ Por que meu coração esta batendo tão depressa? Por que parece ter animais com asas na minha barriga? O que você fez comigo, filho de Atena? ─ Minha voz era uma mistura de curiosidade, ameaça e duvida. Eu sentia todas as minhas defesas se erguendo, como se o que estava acontecendo fosse algo muito ruim. Metade de mim gritava: Você não está pronta. E a outra? Ela dizia com uma voz suave e amorosa: Torne-o seu para sempre. Eu não tomaria nenhuma decisão precipitada, porém. Querendo ou não, ele era ligado a Zeus por sua mãe e eu não tinha certeza se tudo aquilo era um plano contra meu pai ou não.

Realmente eu nunca havia sido apresentada a coisas básicas. Não tinha boa parte das reações humanas cabíveis. Fiquei um tempo refletindo a respeito e, por fim, me aproximei e dei um beijo nele. Mentalmente, eu repetia para mim mesma que eu tinha tudo sobre o meu controle. Eu toquei a face dele com a mão e mantive o beijo em níveis controláveis antes de mais uma fez o encerrar.
─ Você é meu. ─ Falei em uma calma fingidamente despreocupada. Ele não tinha opção: até eu entender o que estava acontecendo, ele iria ficar comigo ou iria morrer e eu obrigaria a alma dele a me servir. Dei um sorriso maldoso. ─ Seja vivo ou na forma de alma. ─ Meu tom suave quando ameaçou deixava claro que eu não estava brincando no que dizia respeito a mata-lo para ter o que eu queria.

─ Não é você a causa do meu medo, querido. ─ Sutilmente, olhei para cima e depois para ele de novo. Depois, eu me deitei no chão e ergui a mão esquerda, observando minhas unhas distraída. Não me importava com o que as pessoas achavam ou a forma com que eu falava com elas: mesmo que eu não falasse nada acabava da mesma forma. Talvez conviver com outras pessoas não fosse exatamente uma tarefa para mim. ─ Pessoas são problemas.

Retribui aos selinhos em silencio. Novamente, precisei lutar contra as lembranças da ilha e do que eu havia deixado para trás a seis anos atrás. ─ Seria uma boa ideia se pudêssemos escolher ser ou não machucados. ─ Não fazia muito sentido para mim o que eu havia dito, mas pelo menos era uma forma de quebrar o gelo que estava ameaçando ficar por ai. ─ Vamos falar de outra coisa. ─ Findei.

É engraçado quando você percebe que parece um animal enjaulado. Dei um sorriso e me ajeitei, colocando a cabeça no ombro dele. Pensei um pouco sobre a pergunta dele: o que eu gostava de fazer? Nem eu mesma sabia ao certo. Nunca achara algo que eu fizesse por gostar. ─ Eu não sei. Nunca fiz algo por gostar. Acho que gosto de ler, me distrai. ─ Respondi, pensando. Ler livros a cerca de magia era o mais próximo de prazer que eu já havia chegado, então acho que eu gostava.